indicação de cuidados paliativos em vez de intubação a idosos com Covid-19 e outras doenças associadas tem gerado embates entre equipes médicas e familiares.
No último fim de semana, a família do aposentado Murillo Bechara, 91, internado no Hospital Sancta Maggiore Santa Cecília, da rede Prevent Senior, se viu diante de um dilema.
Internado na sexta (22), Bechara teve piora do quadro clínico, com queda da saturação de oxigênio, no domingo à tarde, e uma de suas filhas foi chamada ao hospital para ser informada de que ele não seria intubado e ficaria em cuidados paliativos.
A família chegou a fazer uma videoconferência de despedida com Bechara. “A Bel [filha de Bechara] insistiu que queria que investissem no pai, que ele fosse intubado para ter mais chance de recuperação, mas o médico respondeu: ‘não estou te perguntando, estou te informando que vamos colocá-lo no paliativo'”, relata o genro, Sandro Serpa.
Segundo ele, a recomendação da intubação tinha sido feita por uma médica particular que acompanha Bechara. “Não sei se a decisão [de não intubá-lo] foi porque eles não têm [leito de UTI] ou porque não querem ocupar com uma pessoa idosa, que vai ficar lá por muito tempo.”
Bechara tem problemas cardiovasculares, além da doença de Alzheimer. Vive em um residencial para idosos em São Paulo desde 2017.
“Ele tem problemas de consciência, mas se relaciona com a gente, conversa. Neste país, estamos vivendo um utilitarismo da vida humana. O que é uma pessoa? É alguém que produz ou alguém que tem uma rede de afetos, que o ama e com quem ele se relaciona. Estamos no país do ‘e daí?’.”
Para Serpa, pode ser que o caso do sogro se encaminhe para os cuidados paliativos, mas a família entende que precisa participar e concordar com essa decisão, que não pode ser apenas do hospital.
O médico Pedro Benedito Batista Junior, diretor da Prevent Senior, afirma que Bechara tem uma série de comorbidades -AVC (Acidente Vascular Cerebral) prévio e insuficiência cardíaca, além de mal de Alzheimer- e que já era um paciente de cuidados paliativos antes da infecção por Covid-19.
Ele diz que desde a internação do idoso a família já estava ciente dessa condição. “Foi informado que ele é um tipo de paciente que, se for intubado, pode morrer na indução [anestésica]. Temos que cuidar sem intubação.”
O médico explica que, mesmo que sobrevivesse ao processo de intubação, o paciente provavelmente teria queda imediata da pressão arterial, situação em que é preciso usar drogas como noradrenalina. “Aí eu vou forçar um coração que já não tem força para bater mais forte, o que pode levar a uma parada cardíaca.”
Segundo ele, não há falta de ventilador ou de leito de UTI na Prevent Senior. “Eu estou com 56% de uso de ventilador. Não tem a ver com estrutura técnica da empresa, mas, sim, com a condição clínica do paciente.”
Batista Júnior diz que o protocolo adotado no caso está trazendo conforto e segurança ao paciente. “Ele está com máscara de oxigênio, recebendo anticoagulação, corticoide em dose adequada. Não tem necessidade de intubação. Não tem nada imposto. É uma decisão médica de não lesar o paciente.”
Segundo o diretor, ao menos 140 nonagenários, também internados com Covid e com padrões clínicos parecidos com os de Bechara, já tiveram alta sem a necessidade de intubação.
De acordo com a advogada Luciana Dadalto, pesquisadora de temas ligados ao direito médico e bioética, esses dilemas estão acontecendo com muito frequência e há uma mistura de conceitos e de ideias mesmo antes da pandemia de Covid-19.
“A decisão de intubar ou não um paciente é técnica, é do médico baseado em evidências científicas, no prognóstico do paciente.”
Segundo ela, é comum no Brasil as famílias tentarem interferir nessa tomada de decisão, mesmo que, do ponto de vista jurídico, isso não se sustente.
“Os médicos, com medo da judicialização, às vezes abrem mão da técnica por conta do desejo da família. E esse desejo de obstinação terapêutica está muito ligado à dificuldade social de aceitar a morte como um fato natural.”
O advogado José Luiz Toro, presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Saúde Suplementar, lembra que o próprio Código de Ética Médica veta que o profissional tome “medidas heroicas e obstinadas” nos casos em que não há possibilidade de cura.
“Isso não quer dizer que a pessoa ficará sem qualquer atenção. Nesse momento, entra a medicina paliativa. E essa é uma decisão do médico assistente, não da família. Mas o médico tem que justificar o motivo pelo qual está tomando essa medida.”
Por outro lado, segundo Luciana Dadalto, a escassez de leitos e respiradores durante a pandemia tem levado muitos hospitais a adotarem a idade do paciente como critério de não intubação.
“Estamos vendo isso com 90, 80, 70 anos. Isso é absurdo e inconstitucional, ilegal. Mas uma coisa é não investir no paciente porque a condição clínica mostra que a utilização de um suporte de vida é maléfica e a outra é decidir dar preferência para uma outra pessoa [mais jovem, por exemplo] a despeito do mais velho também ter indicação [de intubação].”
Para ela, cuidado paliativo no Brasil ainda é um conceito muito truncado, embora ele se mostre muito importantes no controle de sintomas e para a qualidade de vida e de morte.
“Em instituições que não estão preparadas, as coisas podem ser deturpadas. Se eu não tenho recurso, mando para cuidado paliativo. Mas esse cuidado tem que acontecer independentemente de haver ou não recursos, tem que estar presente diante de qualquer doença ameaçadora da vida.”
Esse embate em torno dos cuidados paliativos também ocorre em outros países. Nos EUA e a Inglaterra, instituições de saúde têm processado famílias que insistem em tratamentos inúteis, que não revertem o quadro e só trazem sofrimento ao paciente.