No início da semana, o presidente Jair Bolsonaro se envolveu em mais uma polêmica no âmbito do enfrentamento à covid-19 ao afirmar que “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”. Após a Secretaria de Comunicação (Secom) da Presidência endossar a fala nas redes oficiais do governo, nesta quarta-feira (2/9) foi a vez do vice, Hamilton Mourão, reafirmar a opinião do mandatário. Restou ao Ministério da Saúde tentar acalmar os ânimos, ao indicar que, apesar de não ter a intenção de tornar a vacina da covid-19 obrigatória, é necessário destacar que a imunização é, sim, “um grande instrumento para que a gente volte à normalidade.”
A negativa em obrigar a população a se vacinar foi feita por Bolsonaro na segunda-feira. No dia seguinte, a Secom da Presidência repercutiu a resposta pelas redes sociais, frisando que “o governo do Brasil preza pela liberdade dos brasileiros”. Ao falar com jornalistas no Palácio da Alvorada, o vice-presidente Mourão tentou consertar a fala do presidente. “Acho que você pode encontrar gente que não quer tomar a vacina. É o que eu te digo: você vai agarrar à força? Foi isso que ele (Bolsonaro) quis dizer”, explicou, completando: “você não consegue ter a coerção para obrigar todas as pessoas a se vacinarem (…). Não quer dizer que ninguém vai tomar.”
Medida prevista em lei sancionada em fevereiro pelo próprio mandatário, a indicação compulsória da imunização, mesmo sendo apontada como principal estratégia para conter a pandemia, não é prevista pelo governo. “Lembramos, também, que a vacina não é obrigatória, mas vai ser um grande instrumento para que voltemos à nossa normalidade dentro da sociedade”, afirmou, nesta quarta (2/9), o secretário-executivo da Saúde, Élcio Franco, ao fim da tradicional coletiva de imprensa que versa sobre o cenário epidemiológico do Brasil no combate ao novo coronavírus.
Franco ressaltou que a pasta continuará a incentivar a vacina para a imunização da população. “Caso contrário, poderemos ter o risco da volta de doenças que já haviam sido eliminadas no país, como aconteceu com o sarampo recentemente”, pontuou. Para ele, a vacinação tem “importância ímpar” na redução ou erradicação de algumas doenças. Na declaração final, o secretário-executivo ainda enfatizou que o Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Brasil é “um dos mais completos e reconhecidos do mundo.”
O secretário de vigilância em saúde, Arnaldo Correia, reforçou a expertise brasileira quanto aos programas nacionais de imunização. “Nós distribuímos mais de 300 milhões de doses de vacina a cada ano […]. Esse mesmo programa tem, hoje, a seu dispor, 37 mil postos de vacinação espalhados no país. Portanto, temos uma capilaridade de distribuição de uma eficácia, eficiência e efetividade que faz do Brasil portador de um dos programas de vacinação mais potente, valorizado e reconhecido do mundo”, defendeu.
Constituição
O governo tem poder para exigir a vacinação e a declaração do presidente, de que “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”, contraria a Constituição, na opinião de especialistas em Direito e Saúde Pública. Para Roberto Dias, professor de Direito Constitucional da Fundação Getulio Vargas (FGV), a declaração de Bolsonaro “fere claramente norma expressa na Constituição”, que determina que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença.
“Se há ordem para que o Estado viabilize políticas que possam reduzir o risco de doenças, ele (o presidente) está impedido de fazer algo contrário a isso. Quando põe em dúvida a obrigatoriedade da vacina, desincentiva ou pratica um ato como esse, eximindo as pessoas de uma obrigação coletiva — o que coloca em risco a saúde da população como um todo —, ele está indo expressamente contra essa previsão constitucional.” O médico sanitarista Daniel Dourado afirma que a declaração do presidente é preocupante, pois “atrapalha” e “boicota” a atuação dos profissionais de saúde. “Ele está plantando a dúvida sobre algo que é seguro, eficaz, e é uma das tecnologias mais importantes”.
Fala contradiz lei do próprio governo
Sancionada pelo próprio presidente, a Lei nº 13.979 prevê a possibilidade de vacinação obrigatória como estratégia de contenção da covid-19. Esta é uma das medidas “para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, a determinação de realização compulsória de vacinação ou outras medidas profiláticas”, diz o texto. Vale destacar, ainda, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que define que o Sistema Único de Saúde (SUS) deve promover programas de assistência médica para a prevenção das enfermidades que ordinariamente afetam a população infantil e diz que ser “obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias.”