São Francisco do Conde encerra o ano mergulhada num paradoxo que fere a razão e a dignidade humana. Enquanto o município aparece nas estatísticas nacionais como uma das cidades mais ricas do Brasil, o povo atravessa um Natal sombrio: salários atrasados, benefícios suspensos, transporte inexistente, serviços públicos em colapso e uma sensação coletiva de abandono. O ano que se encerra escancararam um retrato cruel: riqueza concentrada, poder fechado em poucos gabinetes e um povo relegado à própria sorte.
Nos bastidores do poder, a percepção de que o prefeito Antônio Calmon já não governa como quem precisa prestar contas à população ou aos aliados. Não é candidato a nada, não busca popularidade, não mede desgaste. O comando político e administrativo já foi entregue a Greice Tanferi, secretária de Saude que, segundo relatos e comentários públicos, construiu uma “prefeitura dentro da prefeitura”. A ela se atribui o controle da caneta, do ritmo dos pagamentos e das prioridades, inclusive a decisão de quem receber pagamentos e quem espera. O simbolismo é devastador: enquanto a comunicação oficial divulga cards afirmando que “está tudo em dia”, profissionais e trabalhadores se manifestam nas redes relatando pisos não pagos, décimos incompletos e meses em atraso.
A omissão da maioria dos vereadores completa o quadro. Muitos parecem não perceber, ou preferem ignorar, que afundam junto com um governo que já não se importa com o custo político. O desgaste recairá sobre quem busca reeleição, enquanto o Executivo avança com uma estratégia de Calmon/Greice descrita por fontes: enfraquecer a classe política local, trocar o maior número possível de vereadores e pavimentar o caminho para 2028 com uma candidatura “ungida” pelo poder de agora. A leitura é simples e amarga: quem paga a conta é o povo e os aliados descartáveis.
Nas redes sociais, a indignação ganhou voz. Comentários falam em “cidade com clima de velório”, questionam onde está o dinheiro, denunciam a falta de pagamento a categorias específicas, criticam a seletividade dos repasses e ironizam a narrativa oficial. Há quem compare a São Francisco do Conde que poderia ser polo educacional, cultural e econômico do Recôncavo com a cidade real, marcada por prédios históricos abandonados, juventude sem transporte e famílias escolhendo entre pagar contas e colocar comida na mesa. A revolta não é organizada por partidos; é espontânea, do povo, transversal, cotidiana.
A metáfora do poder ajuda a entender o momento. Greice, que se acha Margaret Thatcher, a verdadeira “Dama de Ferro” não para elogiar, mas para contrastar: enquanto a “Dama de Ferro” britânica marcou um período de decisões duras com efeitos estruturais, a “dama de ferro” local é descrita como exercendo um poder de “sedução política” em cima de Calmon que concentra poder, seleciona e exclui. Não é força institucional; é magia de bastidores. E o resultado, aos olhos de quem sofre, o povo, é o afundamento da cidade.
Há ainda o símbolo mais doloroso deste Natal: a inversão do legado cristão. Ostentação, soberba e humilhação substituíram solidariedade, cuidado e partilha. Enquanto familiares do prefeito são associados, nos comentários e denúncias públicas, à acumulação de patrimônio, o povo enfrenta fome, desalento e incerteza. Luzes apagadas não são apenas decoração ausente; são o reflexo de uma cidade que perdeu o brilho porque perdeu prioridade.
Este editorial não afirma sentenças nem substitui a Justiça. Mas faz a pergunta que ecoa nas ruas, nas redes e nas mesas vazias: até quando a Justiça vai permitir o sofrimento do povo de São Francisco do Conde? Quando os fatos se acumulam, as versões se contradizem e a dor se repete, a omissão deixa de ser neutralidade. O silêncio institucional já não protege ninguém, apenas prolonga a agonia coletiva. Se o “Rei” está politicamente morto, como dizem, o reino não pode continuar sangrando.












