Em um movimento histórico e sem precedentes na política de São Francisco do Conde, o vereador Rafael Nogueira protocolou, na tarde desta terça-feira, a primeira Denúncia para instauração do processo de impeachment do prefeito Antônio Carlos Vasconcelos Calmon. O documento ao qual o Jornal Candeias teve acesso com exclusividade reúne centenas de páginas e apresenta um dos relatórios mais extensos, graves e detalhados já produzidos contra um gestor municipal na Bahia.
Fundamentada no Decreto-Lei 201/67, na Lei Orgânica do Município, na Lei de Responsabilidade Fiscal e em decisões judiciais ignoradas pelo atual governo, a peça descreve aquilo que o parlamentar define como “o cenário mais espúrio e caótico da história do município”, atribuindo à gestão Calmon um conjunto de ilegalidades, omissões, violação de leis, desvio de finalidade orçamentária e desprezo deliberado por determinações do Poder Judiciário.
O Pão na Mesa é apontado como o eixo central do pedido de impeachment. Criado pela Lei 691/2022 para garantir renda mínima a famílias em vulnerabilidade, o programa foi simplesmente suspenso por Calmon logo após as eleições de 2024, sem qualquer autorização legislativa e apesar da LOA 2025 reservar expressos R$ 26,9 milhões para sua execução. Ao acionar a Justiça, o Ministério Público obteve liminar determinando o restabelecimento imediato do benefício. Mesmo assim, Calmon descumpriu integralmente todas as decisões judiciais, ignorou os prazos, acumulou multas e manteve milhares de famílias em absoluta insegurança alimentar.
Para o vereador autor da denúncia, esse comportamento fere diretamente o princípio do mínimo existencial, a legalidade, a continuidade do serviço público e configura crime de responsabilidade por descumprimento de ordem judicial, sendo o mais forte elemento jurídico para o afastamento do chefe do Executivo. A denúncia expõe a paralisação dos programas de bolsas estudantis PROUNIFAS e PROAFEET, ambos com dotação orçamentária vigente, mas abandonados ao longo de 2025. Estudantes relataram meses de atrasos, pagamentos parciais e total desorganização administrativa, enquanto o governo Calmon ampliava em mais de 1.300 servidores a folha de pagamento em apenas cinco meses, gerando um aumento de quase R$ 4 milhões nas despesas de pessoal.
Na mesma linha, o documento descreve o não pagamento do Auxílio Defeso a pescadores e marisqueiras, mesmo com previsão expressa na lei municipal e orçamento disponível, violação confirmada pela própria Secretaria de Desenvolvimento Social. A denúncia também menciona a falta de transparência, já que o Portal da Transparência do Município não apresenta informações claras sobre os repasses dos últimos anos.
Outro ponto crítico envolve a obra do Hospital Estacionário, tratada na denúncia como um dos maiores rombos financeiros da gestão. O contrato inicial, firmado por R$ 6,42 milhões para seis meses, foi aditivado sucessivamente, podendo ter alcançado mais de R$ 30,8 milhões, sem justificativa adequada, sem planilhas atualizadas e com indícios de pagamentos repetidos por estruturas já instaladas. A empresa contratada, Soul Estruturas e Eventos LTDA, possui CNAE principal de eventos, e não de saúde, engenharia ou serviços hospitalares, levantando suspeitas de direcionamento, contratação irregular e favorecimento indevido.
No campo da educação, a denúncia destaca o colapso absoluto do transporte escolar. Com quase um ano sem receber da Prefeitura, a empresa responsável suspendeu totalmente os ônibus, obrigando crianças e adolescentes a caminhar quilômetros por rodovias perigosas para chegar às escolas. O cenário ganhou repercussão estadual após vídeos mostrarem estudantes se deslocando a pé até a Baixa Fria, com mães desesperadas relatando abandono e risco de morte. A Secretaria de Educação, diante do caos, suspendeu aulas presenciais, gerando indignação geral e desencadeando protestos.
A peça ainda afirma que a Prefeitura deve dois meses de salários a contratados e comissionados, deixando centenas de famílias sem renda. O texto descreve a situação como “colapso administrativo provocado intencionalmente”, afirmando que os atrasos começaram imediatamente após o processo eleitoral de 2024 e que o prefeito “se desgarrou totalmente da função pública”.
A denúncia incorpora, ainda, elementos revelados pelo Jornal Candeias sobre o escândalo envolvendo o genro do prefeito, Vinício Costa da Conceição, e o empresário Erick Machado Filgueiras, apontado como “suposto” operador financeiro do núcleo íntimo da atual gestão. Segundo o documento, Vinício e Papito são sócios em franquias de uma rede de fast-food nacional – que reconheceu a sociedade – enquanto Erick aparece como representante legal da Supernutre — empresa que recebeu milhões em contratos da Prefeitura nos últimos meses. A denúncia levanta indícios de favorecimento, enriquecimento ilícito, direcionamento de licitações e ocultação de bens.
Com base em todo esse conjunto de fatos — especialmente o descumprimento reiterado da decisão judicial que ordenou o retorno do Pão na Mesa — o vereador Rafael Nogueira requereu a abertura do processo de impeachment, fundamentando o pedido nos crimes e infrações previstos no art. 4º do Decreto-Lei 201/67: descumprimento do orçamento, omissão na prática de atos obrigatórios, desobediência judicial, gestão temerária dos recursos públicos, violação à dignidade do cargo e negativa de execução de lei municipal.
A crise mudou de endereço e agora se desloca para a Câmara Municipal. Nas ruas, a mobilização popular cresce diariamente: moradores iniciaram uma ampla coleta de assinaturas pelo impeachment, ocuparam a sede do Legislativo para acompanhar o protocolo da denúncia e organizam novos atos para os próximos dias. Líderes comunitários afirmam que não haverá recuo até que o processo seja colocado para votação. Vereadores, nos bastidores, admitem que a conjuntura é de “quebra total de confiança” e que a pressão social pode determinar os rumos da decisão.












