São Francisco do Conde vive um dos momentos mais graves da sua história recente na área da saúde. A QG Construtora, empresa com amplo portfólio de grandes obras na Bahia e no Brasil, incluindo hospitais e policlínicas, teve suspensa a reforma do Hospital Célia Almeida Lima após meses sem receber pagamentos da Prefeitura. O contrato nº 060/2024, no valor total de R$ 14.101.034,00, já teve R$ 10.537.294,65 pagos, mas desde abril a empresa não recebe nenhuma fatura, levando à paralisação da obra. Outras empresas também já entregaram os contratos por conta do calote costumaz de Calmon. A Prefeitura alega falta de recursos, argumento que não se sustenta diante das sucessivas denúncias de pagamentos milionários a operadores políticos ligados ao núcleo familiar do prefeito.
Enquanto a reforma do hospital definitivo está parada, a população assiste perplexa ao fato de que a empresa responsável pelos toldos e pela estrutura do hospital provisório, o chamado hospital estacionário, já recebeu valores que ultrapassam o custo total da reforma do hospital permanente. O contraste evidencia uma inversão completa de prioridades: o equipamento definitivo, essencial para a saúde da cidade, foi abandonado, enquanto o provisório se tornou um ralo contínuo de recursos públicos e que deverá ser investigado na operação que há por vir.
A QG, reconhecida tecnicamente no setor, decidiu interromper os serviços diante da inadimplência, agravando ainda mais a crise da saúde municipal, hoje comandada pela secretária Greice Tanferi. Nos bastidores, circulam relatos de que a própria secretária teria reconhecido que parte significativa do descontrole administrativo decorre do modo de operação dos filhos do prefeito, Polyana e Carlos André, cujas movimentações empresariais e patrimoniais vêm sendo alvo de investigações e denúncias públicas. Ainda segundo essas fontes, Greice teria afirmado que fez tudo o que estava ao seu alcance para proteger o prefeito, mas que o comportamento e “modus operandi” dos filhos pode levar Calmon ao afastamento e até à prisão. “Vou assistir tudo comendo Bobs e tomando Coca-Cola” teria dito.
Paralelamente à paralisação da obra do hospital definitivo, ganham força denúncias gravíssimas envolvendo o Contrato Administrativo nº 203/2022, que trata da implantação e manutenção do Hospital Estacionário, firmado com a empresa Soul Estruturas e Eventos LTDA. O contrato inicial, no valor de R$ 6.420.000,00 por seis meses, foi sucessivamente prorrogado por termos aditivos que estenderam sua vigência para 18 meses, sem a devida readequação financeira, o que pode ter elevado o custo total, em tese, para R$ 19.260.000,00. Com novos aditivos posteriores, o valor pago pode ter alcançado a alarmante cifra de R$ 40.816.000,00.
O Objeto foi a Contratação de empresa especializada para a locação de HOSPITAL ESTACIONÁRIO com fornecimento, montagem, preparação e posterior desmontagem de estrutura temporária de unidade de internação hospitalar, para capacidade de 42 (quarenta e dois) leitos, com áreas de clínica médica, cirúrgica, pediátrica e obstétrica, centro cirúrgico/obstétrico, bioimagem, urgência e emergência, ambulatório, áreas de apoio, área multidisciplinar (enfermagem, serviço social, psicologia, fisioterapia, nutrição), áreas administrativas, e toldos, incluindo a cobertura, instalações elétricas, unidade geradora de energia, hidrossanitárias, gases medicinais, logística, telefonia, climatização, cercamento e caixas d’água.
O caso chama ainda mais atenção pela incompatibilidade técnica da empresa contratada. Conforme consulta ao CNPJ, a atividade principal da Soul Estruturas e Eventos LTDA é a organização de feiras, congressos e eventos, não havendo CNAE compatível com atividades hospitalares, serviços de saúde ou engenharia hospitalar, essenciais para a execução de um hospital provisório. Dos 59 CNAEs secundários registrados, apenas cinco guardam relação remota com o objeto contratado, o que levanta suspeitas de direcionamento de licitação, habilitação irregular, pagamento indevido por serviços especializados e violação aos princípios da legalidade, eficiência e moralidade administrativa.
Outro ponto grave apontado é a ausência de redimensionamento dos valores nos termos aditivos, mesmo após a estrutura do hospital provisório já estar completamente montada. Na prática, a Prefeitura teria continuado pagando como se o serviço estivesse em fase de implantação, quando, na verdade, restavam apenas custos de manutenção e operação, o que pode caracterizar sobrepreço oculto, superfaturamento e enriquecimento ilícito, em prejuízo direto ao erário.
A falta de transparência agrava ainda mais o cenário. Não há, no Portal da Transparência, planilhas de composição de custos, cronogramas físico-financeiros ou justificativas técnicas que expliquem os sucessivos aditivos e os valores mantidos, dificultando o controle social e a fiscalização pelos órgãos competentes. Agrava a crise, o fato de que prefeito tem plena ciência da obrigação legal de readequar os valores, inclusive porque em um dos aditivos houve redução de 20%, demonstrando que o redimensionamento era possível, mas foi abandonado nos aditivos seguintes.
Diante da gravidade dos fatos, o prefeito Antônio Calmon incorre em infração político-administrativa, nos termos do art. 4º, inciso VIII, do Decreto-Lei nº 201/67, por negligência na defesa do patrimônio público e dos interesses do município, abrindo caminho para cassação de mandato, caso as irregularidades sejam confirmadas. Dois pedidos de impeachment foram protocolados na Câmara, mas seguem engavetados por Nem do Caípe.
Com a reforma do hospital definitivo paralisada, um hospital provisório que se transformou em contrato milionário sem fim, suspeitas de superfaturamento, falta de transparência e uma população sem atendimento digno, a saúde de São Francisco do Conde entrou oficialmente na UTI. E a pergunta que ecoa nas ruas, nas unidades de saúde e nos corredores do poder é uma só: até quando a cidade vai pagar com vidas o preço da má gestão e omissão da justiça?













